terça-feira, 2 de julho de 2013

A RAINHA GURREIRA


Há uma lenda a respeito de um poço de Sta. Keyne, na Cornualha. Quando um casal está recém casado, aquele que primeiro beber da água do poço vai governar a casa pelo resto do casamento. É um gracioso fragmento do folclore, o qual gerou alguns poemas e canções divertidas. É dito que o poço obteve seu poder de Sta. Keyne, uma ermitã do século quinto que torturou seu corpo pelo bem de sua alma. Em sua morte, de acordo com a lenda, anjos clementes vieram e removeram a camisa de pelos* que ela usara por anos, e a substituíram por um celestial robe branco. Na verdade, Keyne foi uma rainha antes de ser uma santa, e é possível que a lenda venha mais da lembrança dela como uma rainha guerreira, do que como uma eremita cristã. Ela era filha do Rei Brycham de Brecknock, o pequenino reinado no sul de Gales que manteve uma linha de sucessão independente todo o tempo, do quinto ao décimo século. Como ocorre com tantos dos primeiros santos célticos, há muito pouca evidência dos fatos históricos de sua vida, uma vez que todas as hagiografias são extremamente fantasiosas e pouco confiáveis. Entretanto, sabemos que Brecknock sobreviveu a muitas tentativas de conquista ou assimilação violenta, e podemos razoavelmente deduzir que a dinastia real de Brecknock teria sido muito familiarizada com as artes da guerra. Seria muito interessante voltar numa máquina do tempo, e ver como a Princesa Keyne da família real de Brecknock em Gales tenha acabado vivendo a desesperadoramente pobre e solitária vida de uma eremita, nos confins da Cornualha. Sua lenda – a qual é praticamente tudo o que nos restou dela – parece sugerir que ela foi uma mulher de grande poder em algum momento de sua vida.

Era claramente esperado que as rainhas célticas demonstrassem fisicamente tanta fortaleza de espírito quanto os reis celtas. Mesmo daquelas que não se tornaram comandantes na guerra, como as bem-atestadas Boudica e Cartimandua, se esperava que tivessem qualidades guerreiras. Quando a deusa irlandesa Macha dá à luz seus famosos gêmeos, é nas circunstâncias físicas mais árduas:

Logo, uma feira foi realizada em Ulster. . . . Crunniuc arrumou-se para a feira com o resto . . .

- ‘Seria bom não bancar o fanfarrão ou o descuidado em qualquer coisa que diga’, a mulher [Macha] disse a ele.
- ‘Isso não é provável', ele disse.

A feira aconteceu. No fim do dia o coche do rei foi trazido ao campo. Seu coche e seus cavalos venceram. A multidão disse que nada poderia bater aqueles cavalos.

- 'Minha esposa é mais rápida', disse Crunniuc.

Ele foi imediatamente levado ao rei, e a mulher foi chamada. Ela disse ao mensageiro:

-'Seria para mim um fardo pesado ir libertá-lo agora. Eu estou grávida'.
- 'Fardo?' disse o mensageiro. 'Ele morrerá a menos que você venha'.

Ela foi à feira, e começou a sentir as dores. Ela gritou para a multidão:

- 'Uma mãe pariu cada um de vocês! Ajudem-me! Esperem até que nasça a minha criança'.

Mas ela não podia movê-los.

- 'Muito bem', disse ela. 'Disso, um mal duradouro virá para todos de Ulster'.
- 'Qual é o seu nome?' disse o rei.
- 'Meu nome e o nome de minha prole', ela disse, 'será dado a este lugar. Eu sou Macha, filha de Sainrith mac Lmbaith.'

Então ela correu a carruagem. Assim que a carruagem chegou ao fim do campo, ela deu à luz ao lado dele. Ela pariu gêmeos, um filho e uma filha. O nome, Emain Macha, os Gêmeos de Macha, veio disto. Conforme dava à luz, ela gritava que todos os que ouvissem aquele grito iriam sofrer dos mesmos tormentos por cinco dias e cinco noites nos momentos de suas maiores dificuldades. Tal aflição, mesmo depois, agarrou-se a todos os homens de Ulster que estiveram lá naquele dia, e nove gerações após eles.

O conto faz recordar das lendas dos índios americanos sobre mulheres-apache parindo nas costas dos cavalos, enquanto o resto da tribo continuava na ida. Há um tema similar de um grito como presságio na história de Derdriu ou Deirdre das Tristezas, cujo grito de dentro do útero antes de seu nascimento pressagia um grande mal. A morte de Derdriu também é tão intencional e violenta quanto a de qualquer guerreiro:

- 'O que você vê que mais odeia?' Conchobor disse.
- 'Você, é claro', disse ela, 'e Eogan mac Durthacht!'
- 'Vá e viva por um ano com Eogan, então', disse Conchobor.

Então ela foi mandada para Eogan.

Eles partiram no dia seguinte para a feira de Macha. Ela estava atrás de Eogan no coche. Ela tinha jurado que dois homens juntos vivos no mundo nunca a teriam.

- 'Isso é bom, Derdriu,' Conchobor disse. 'Entre mim e Eogan você é uma ovelha mirando dois carneiros'.

Um grande bloco de pedra estava na frente dela. Ela impeliu sua cabeça contra a pedra, e fez uma massa de fragmentos dela, e morreu. A treinadora em armas de Cu Chulainn, mencionada acima, era Scathach, uma guerreira e profetiza. Ainda mais feroz que Scathach é Aife, 'a guerreira mais dura do mundo', que desafia Scathach para um combate corpo a corpo, o qual Cu Chulainn aceita no lugar de Scathach. Ainda sim, Cu Chulainn tem que usar de artifícios para vencer a luta, sem mencionar um apoio que a luta moderna não permitiria:

Cu Chulainn foi até Scathach e perguntou o que Aife tinha de mais querido sobre todas as coisas.

- As coisas que ela possui de mais caro', disse Scathach, 'são seus dois cavalos, seu coche e seu cocheiro'.

Cu Chulainn encontrou e lutou com Aife sobre a corda de talentos. Aife esmagou a arma de Cu Chulainn. Tudo que ela deixou foi uma parte de sua espada, não maior que um punho.

- 'Olhe! Oh, veja!' disse Cu Chulainn. 'O cocheiro de Aife e seus dois cavalos e o coche caíram dentro do vale! Todos estão mortos'!

Aife olhou em volta e Cu Chulainn saltou para ela e a agarrou pelos dois seios. Ele a pôs nas costas como um saco, e a trouxe de volta para seu próprio exército.

Quando a Rainha Medb está revendo seus exércitos com seu consorte, o Rei Ailill, ela se preocupa com os Galeoin, uma tropa de três mil homens de Leinster. Quando Ai Hill pergunta que falhas ela encontra neles, ela responde que não encontra nenhuma, e então lista suas excelentes qualidades como soldados. ‘O problema’, ela diz, ‘é que se eles forem com os outros, eles terão todo o crédito’.

- 'Mas eles estão lutando do nosso lado', disse Aiti.
- 'Eles não podem vir', disse Medb.
- 'Deixe-os ficar, então', Ailill falou.
- 'Não, eles também não podem ficar', disse Medb.
- 'Eles apenas viriam e se apossariam de nossas terras quando tivessemos ido'.
- 'Bem, então o que vamos fazer com eles’, disse Ailill, ‘se não podem ficar nem vir?’
- 'Matá-los’, Medb disse.
- 'Que esse é o pensamento de uma mulher e não um engano!' Ailill disse. 'Uma má coisa a se dizer'.

No caso, os Galeoin são dispersos para diferentes partes do exército, mas o ponto que foi criado foi o de que uma rainha guerreira pode ser ainda mais implacável que um rei guerreiro, e muito menos suscetível a questões triviais sobre honra ou lealdade.

Os exemplos mais poderosos da rainha guerreira são os das deusas-de-batalha, a Morrigan, Badbh, Macha (que deu à luz os gêmeos, mencionados acima) e Nemhain. Nas lendas, a deusa aparece como uma lavadeira no vau de um rio, lavando as armas e a armadura do herói, em preparação para sua partida desta vida. Ela, ou elas (essa é uma deusa com muitos aspectos), podem mudar de forma à vontade. Sua forma favorita é a de um corvo, escolhendo entre os cadáveres quando é finda a batalha, os membros ainda se contraindo, e o sangue negro está esfriando sobre o chão. Nemhain, cujo nome significa 'Frenesi', mata uma centena de guerreiros apenas soltando seu horrendo grito para eles. A Badbh, frequentemente chamada Badbh Catha ou o Corvo de Batalha, aparece na lenda do Hotel Da Derga como uma mulher-corvo velha, hedionda, sangrando, e com uma corda ao redor de seu pescoço, para predizer Conaire de sua morte. A Morrigan ou Grande Rainha é uma instigadora da guerra, uma portadora da morte e destruição, assim como, aparentemente incongruente, uma poderosa deusa da fertilidade. Ela é instável: amorosa e apoiadora do herói-guerreiro quando o favorece, perversa e destrutiva quando ele está desvalido. Quando Cu Chulainn finalmente morre, a Morrigan é vista empoleirada em seu ombro.

A 'banshee', que é a pronúncia inglesa do irlandês bean sidhe ('mulher fada'), é um tipo genérico da deusa da guerra ou da morte. Seu choro lamentoso, que prediz a morte, é chamado “caoin” em irlandês, pronunciado 'keen', que é a origem do uso do inglês 'keen' para significar 'lamento' ou 'chorar por'. Há várias lendas do folclore irlandês sobre a bean sidhe. Uma é a de que ela lidera pavorosas procissões fúnebres, com um imenso coche negro puxado por quarto cavalos negros sem cabeça, e se algum dos residentes de uma casa for tolo demais para abrir a porta quando a bean sidhe bate nela, eles receberão uma tigela de sangue atirado em suas faces.

*N.T. Em inglês, hair shirt: é uma peça grossa de roupa, normalmente feita de pelos de bode, destinada a ser usada junto ao corpo para manter quem usasse em um estado de desconforto constante. Eram usadas por algumas ordens religiosas cristãs, como forma de penitência por determinadas atitudes, ou estilo de vida.


Bibliografia:
King, John em Kingdoms of the celts – A History and Guide
Cap. 11 – The Kings and Queens of Mithology – The Warrior Queen pgs. 212-215
Tradução: Renata Gueiros

2 comentários:

  1. Un leyenda espléndida, me encanta leerte aprendo mucho de historias y relatos mitológicos.
    Excelente artículo Selma, te dejo un fuerte abrazo, bella jornada!

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  2. Querida amiga cristina é muito bom que vc esteja presente mais uma vez aqui.

    Desejo a vc tudo de bom

    bjs

    Selma

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